quinta-feira, 25 de abril de 2013

Código de Processo Civil anotado artigo 2.º

Artigo 2.º

(Garantia de acesso à justiça)

1. A protecção jurídica através dos tribunais implica o direito de, em prazo razoável, obter ou fazer executar uma decisão judicial com força de caso julgado.(*)

2. A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde uma acção, destinada a fazê-lo reconhecer em juízo ou a realizá-lo coercivamente, bem como as providências necessárias para acautelar o efeito útil da acção.(*)


1. Vedando aos particulares o recurso à própria força para a realização dos seus direitos (artigo 1.º do CPC), o Estado obriga-se, através dos tribunais, a conceder a todo o titular do direito violado a providência necessária à reintegração efectiva desse direito.

Adequadamente, os artigos 62.º, 69.º e 70.º da CRM consagram o direito de acesso ao tribunal e o direito de acesso ao próprio direito. O direito de acesso aos tribunais implica a existência de uma protecção judicial integral e sem lacunas de todos os direitos e interesses legalmente protegidos; significa a atribuição a todos os sujeitos de direito dos meios processuais próprios que lhes permitam alcançar a tutela de toda e qualquer situação juridicamente relevante. Por seu turno, o direito de aceder ao próprio direito tem uma amplitude maior, pois abrange o direito à informação e consulta jurídica e ao patrocínio judiciário. Para além disso, surge frequentemente como pressuposto do primeiro, pois o recurso a um tribunal com a finalidade de obter dele uma decisão sobre uma questão juridicamente relevante (direito de acesso aos tribunais) pressupõe logicamente um correcto conhecimento dos direitos e deveres por parte dos seus titulares (direito de acesso ao direito). E da conjugação destes direitos, genericamente designados de acesso à justiça, resulta a sua concessão a todos os cidadãos, sem qualquer discriminação, nomeadamente por motivos económicos, de cor, raça, sexo, origem étnica, lugar de nascimento, religião, grau de instrução, posição social, estado civil dos pais, profissão ou opção política (artigo 35.º da CRM).

2. No quadro das normas emanadas do direito internacional, Moçambique aceita, observa e aplica os princípios da Carta da ONU e da Carta da União Africana, cujos preceitos são interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (artigos 17.º, n.º 2 e 43.º da CRM).
Em conformidade, o direito de acção judicial, a garantia de acesso aos tribunais e ao próprio direito e a sujeição do processo, uma vez iniciado, ao princípio do contraditório e da igualdade de armas estão previstos nos artigos 10.º da DUDH, 7.º da CADHP, bem assim no artigo 14.º do PIDCP, sendo uma concretização do due processo of law, ou seja, da regra do devido processo legal.

3. Moçambique celebrou acordos de cooperação jurídica e judiciária com determinados Estados a fim de proporcionar igualdade de tratamento aos cidadãos nas ordens jurídicas correspectivas no acesso à justiça. Vid., a propósito, o Acordo entre Moçambique e Alemanha, ratificado pela Resolução n.º 9/82, de 7 de Julho; o Acordo entre Moçambique e Cuba, ratificado pela Resolução n.º 3/89, de 23 de Março; o Acordo entre Moçambique e Portugal, ratificado pela Resolução n.º 10/91, de 20 de Dezembro; e o Acordo de Cooperação Judiciária entre Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe ratificado pela Resolução n.º 4/89, de 23 de Março.

4. No plano ordinário, o artigo 11.º da LOJ concretiza a garantia do acesso dos cidadãos aos tribunais, e, bem assim, o direito de defesa, o direito à assistência jurídica e ao patrocínio judiciário. Ainda, neste sentido, atente-se ao EOAM, aprovado pela Lei n.º 28/2009, de 29 de Setembro, e ao EOIPAJ, aprovado pelo Decreto n.º 54/95, de 13 de Dezembro.

O artigo 12.º da LDC, aprovada pela Lei n.º 22/2009, de 28 de Setembro, assegura o direito à acção inibitória destinada a prevenir, corrigir ou fazer cessar práticas lesivas dos direitos do consumidor.

5. A tutela jurisdicional efectiva é desenvolvida, inter alia, pela norma em apreço, a qual estabelece o direito de obter num prazo razoável uma decisão de mérito (n.º 1) e determina que a todo o direito corresponde uma acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a sua violação e a realizá-lo coercivamente, quando necessário (n.º 2, 1ª parte).

O mesmo preceito prevê ainda a possibilidade de se solicitarem providências que, baseadas em critérios de celeridade e efectividade, se mostrem indispensáveis à tutela em tempo útil das situações jurídicas que possam ser aniquiladas ou esvaziadas em consequência da natural demora na composição definitiva do litígio (n.º 2, in fine). Note-se que a requerida intervenção jurisdicional tem necessariamente o seu tempo e, mesmo que sejam observados todos os prazos previstos na lei para a prática dos devidos actos processais, pode suceder que a actividade destinada ao reconhecimento da existência de um direito ou interesse demore tanto tempo que a decisão, quando proferida, já não possua qualquer efeito prático. Daí que, para eliminar os riscos inerentes à demora na obtenção de uma decisão definitiva favorável, a lei faculte ao requerente a solicitação de providências, de natureza provisória, que acautelem o direito ou interesse reclamado, maxime o efeito útil da acção.

6. No campo prático, o acesso à jurisdição nem sempre é plenamente alcançado.

Com o aumento da gama dos direitos individuais e colectivos, há proporcionalmente um incremento do recurso aos processos judiciais. A demanda por estes serviços não encontra da banda do Estado, nomeadamente no exercício da sua função jurisdicional, pronta resposta para os utentes. Resulta daqui uma justiça muitas vezes inacessível, tardia ou mesmo inoperante. E assim sendo, não se pode falar de justiça real e efectiva sem que, em prazo razoável, o tribunal declare ou faça executar uma decisão judicial com força de caso julgado.

Disse, a propósito, o jurista e político brasileiro Ruy Barbosa, Oração aos Moços, 5ª edição, editora Casa de Ruy Barbosa, Rio de Janeiro, 1999, p. 40, que “uma justiça lenta pode ser eficiente, mas jamais eficaz”. Nesta medida, não tem acesso à justiça somente aquele que não consegue fazer-se ouvir em juízo, mas também todo aquele que, pelas imperfeições do processo, recebe uma justiça tardia ou alguma injustiça de qualquer ordem. A justiça lenta é cara e diminui em grande parte a eficácia dos textos legislativos. A justiça tardia não deve assim ser apelidada de justiça, mas antes uma injustiça qualificada e manifesta.

Mauro Cappelletti e Bryant Garth, O Acesso à Justiça, Editora Fabris, Porto Alegre, 1988, descrevem os seguintes obstáculos no acesso à justiça: – o obstáculo económico, se os interessados não estiverem em condições de aceder aos tribunais por causa da sua pobreza; – o obstáculo organizatório, se a tutela de certos interesses impõe uma profunda transformação nas regras e institutos tradicionais do direito processual, sendo que a solenidade dos procedimentos é privilegiada em detrimento da solução dos litígios; e, por fim, – o obstáculo propriamente processual, quando os tipos tradicionais de processo são inadequados para algumas tarefas de tutela.

Em sentido próximo, Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, pp. 51-66, explica que a lentidão processual encontra causas endógenas e exógenas. Como causas endógenas podem ser referidas as seguintes: a excessiva passividade, se não legal, pelo menos real, do juiz da acção; a orientação da actividade das partes, não pelos fins da tutela processual, mas por razões frequentemente dilatórias; alguns obstáculos técnicos, como os crónicos atrasos na citação do réu e a demora na proferição do despacho saneador devido às dificuldades inerentes à elaboração da especificação e do questionário. Outras causas da morosidade processual são exteriores ao próprio processo (causas exógenas): falta de resposta dos tribunais ao crescimento exponencial da litigiosidade, dada a exiguidade dos meios disponíveis; maior complexidade do direito material e crescente uso nele de conceitos indeterminados e de cláusulas gerais, cuja concretização encontra limitações na deficiente preparação técnica dos profissionais forenses. Na mesma orientação, leiam-se Cândido Dinamarco, A Reforma do Código de Processo Civil, Malheiros, São Paulo, 1995; Lebre de Freitas et al, Aspectos do Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997; Madalena Duarte, Acesso ao Direito e à Justiça, Oficina do CES, Coimbra, 2007; e Boaventura de Sousa Santos e João Carlos Trindade, Conflito e Transformação Social: Uma Paisagem das Justiças em Moçambique, Vol. I, Edições Afrontamento, Porto, 2003.

7. Uma consequência da morosidade da justiça é o recurso cada vez mais frequente às providências cautelares como forma de solucionar antecipadamente os litígios, especialmente quando elas podem antecipar a tutela definitiva ou mesmo vir a dispensá-la. Não é, contudo, essa a vocação das providências cautelares, como se verá nos comentários às disposições a elas referentes (artigos 381.º e segs. do CPC).

8. Quando concebido na perspectiva do acesso à justiça, o quadro normativo do processo civil deve orientar-se pela eliminação de obstáculos que impeçam, ou, pelo menos, dificultem, esse acesso. O poder judiciário deve aparelhar-se cadenciadamente para receber este fluxo tomando medidas que reduzam o tempo e a circulação de papéis dentro do processo. São várias as soluções habitualmente seguidas (ou tentadas) para obviar à morosidade processual. Salientam-se, entre elas, as seguintes soluções: o estabelecimento entre as fases do processo, ou mesmo no seu interior, de regras de preclusão, que obstem a que um acto omitido possa vir a ser realizado fora do seu momento legalmente fixado; o reforço do controlo do juiz sobre o processo; a concentração do processo numa audiência na qual a causa possa ser discutida e, eventualmente, decidida. Nunca é demais lembrar a máxima de Chiovenda, traduzida num verdadeiro slogan, segundo a qual “na medida em que for praticamente possível, o processo deve proporcionar, a quem tem um direito, tudo aquilo que ele tem direito de obter”. A propósito, vid. Pedro Silva Dinamarco, Ação Pública, Saraiva, São Paulo, 2001, p. 41.

9. A concessão do direito à celeridade processual deve possuir, para além de qualquer âmbito programático, um sentido preceptivo bem determinado, pelo que a parte prejudicada com a falta de decisão da causa num prazo razoável por motivos relacionados com os serviços da administração da justiça deverá ter direito a ser indemnizada pelo Estado de todos os prejuízos sofridos. Esta responsabilidade do Estado é objectiva, ou seja, é independente de qualquer negligência ou dolo do juiz da causa ou dos funcionários judiciais. Cabe assim ao legislador fixar em sede da lei do processo as consequências para o incumprimento dos prazos legais. Esta matéria é melhor desenvolvida por Marten Breuer, State Liability for Judicial Wrongs and Community Law: The Case of Gerhard Köbler v. Áustria, European Law Review, 2004; Aveiro Pereira, A Responsabilidade Civil por Actos Jurisdicionais, Coimbra Editora, Coimbra, 2001; Anne-Sophie Botella, La Responsabilité du Juge National, Revue Trimestrielle de Droite Européen, Avril-Juin, 2004 e Hermenegildo Pedro Chambal, A Denegação da Justiça como Fundamento da Responsabilidade Civil por Actos Jurisdicionais, CFJJ, Maputo, 2009.

10. O direito à acção não existe em todos os casos, pois que há direitos que não gozam de tutela do Estado. O C. Civil reporta-se, desde logo, às obrigações naturais (artigos 402.º a 404.º), às obrigações prescritas (artigo 304.º, n.º 2) e às obrigações derivadas de jogos e apostas (artigo 1245.º), sendo que não podem ser repetidas as prestações realizadas espontaneamente em cumprimento de qualquer uma destas obrigações, quando válidas, bem assim não podem ser judicialmente exigíveis.







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