segunda-feira, 15 de junho de 2009

Quo vadis titanic?

Nos dias que correm, um assunto em voga intra e extra muros, é a crise do sistema financeiro internacional, e a consequente recessão, cujo epicentro se situa nos Estados Unidos da América e espargido pela Europa ocidental e o resto do mundo, visto tratar-se este de uma aldeia global.

Afigura-se, no entanto, difícil perceber as razões desta crise de dimensão planetária. O mundo nunca esteve tão pejado de pessoas diplomadas em diversas áreas do saber científico que, teoricamente, tem efectiva resposta para este estado de coisas.

Paul Krugman, prémio Nobel de Economia de 2008, graças as suas teorias sobre o comércio internacional e geografia económica, escreve no The New York Times, fazendo uma analogia entre a crise actual e o naufrágio do Titanic. Diz ele que no começo, quando o Titanic atingiu o iceberg, a tripulação pensou que não era nada grave. Certo, a água tinha entrado em alguns compartimentos, mas como estavam isolados dos outros, nada aconteceria. O peso da água porém mudou a posição do barco e os compartimentos que estavam intactos e não inundados começaram a receber água, um após o outro.

Como então se explica que a tripulação (académicos, nos mais diversos quadrantes) não se tenha apercebido desses sinais? E paises do sul, como Moçambique, como se tem engajado para fazer face a este estado de coisas apresentando soluções que mais não são do que a acção educativa posta em prática?

A propósito da educação, Wilhelm von Humboldt da Universidade de Berlim, em 1809 disseminou a ideia de que as universidades são lugares para realizar pesquisa. O papel delas é o do munir os estudantes com uma ampla base de educação e cultura e preparar as suas carreiras. Os professores deviam por isso ser estudantes, pesquisadores e instrutores.

Questiona-se por isso a eficácia da acção educativa e dos muitos diplomas que as universidades passam.

Num país como o nosso onde a síndrome da doutorice está a atingir níveis calamitosos pela demanda às instituições de Ensino Superior, o que seria motivo de regozijo constitui antes motivo para inquietação.

É difícil de aceitar que haja instituições universitárias a funcionar sem professores qualificados, bibliotecas ou até mesmo instalações para acomodar os respectivos cursos. É useiro estudantes fazerem os seus cursos superiores baseando-se, em certas áreas temáticas, apenas nos apontamentos ditados pelo professor, ou, no melhor dos casos, lendo um único livro, o que equivale a uma única perspectiva sobre a matéria.

Em algumas instituições de ensino, a avaliação dos formandos assenta na escolha múltipla o que é feito como forma de aliviar a carga horária do docente na correcção do teste. São premiados os estudantes reprodutores das ideias veiculadas pelos professores em detrimento da exploração da capacidade de raciocínio por esses mesmos estudantes, que até podem ser penalizados por terem ido para além da corrente dominante espargida pelo formador. Em todo o caso, não deixa de constituir uma aberração as ciências quando, a título de exemplo, em plena Faculdade de Direito, haja testes seguindo a metodologia de escolha múltipla ou verdadeiro ou falso, sem se adicionar espaço para a devida argumentação.

E que dizer da cultura geral, complementar à acção educativa? As pessoas pura e simplesmente deixaram de ler romances e outros géneros literários. Livros de George Orwell, Honoré De Balzac, Le Carré e outros deixaram de encorpar a mentalidade dos nossos académicos. Simplesmente apartaram-se da leitura. Mas tem opinião sobre tudo!

Depois do monopólio pelo Estado nos anos a seguir a independência nacional, a introdução da economia de mercado em 1987 colocou novos actores no cenário sócio-económico e cultural, designadamente o sector privado e a sociedade civil na regência do Ensino Superior. Foi neste contexto que se criou o quadro legal que permitiu a intervenção do sector privado no Ensino Superior, através da Lei nº 1/93, de 24 de Junho - Lei do Ensino Superior- que passou a regular o Ensino Superior Público e Privado, iniciando-se desde modo o processo de criação das primeiras Instituições Privadas do Ensino Superior, designadamente, a Universidade Católica de Moçambique (UCM) pelo Decreto 43/95, o Instituto Superior Politécnico e Universitário em (ISPU) pelo Decreto 44/95, cujas actividades se iniciaram em Agosto de 1996. Em 1997 entrou em funcionamento o Instituto Superior de Ciências e Tecnologia de Moçambique (ISCTEM), criado pelo Decreto 46/96.

A partir dai foi um boom de universidades e outras escolas superiores, em pleno derrame do ensino superior. Apesar de alguma apreensão por parte da massa pensante do país relativamente a qualidade dos quadros em formação ou recentemente formados, a população estudantil a frequentar o Ensino Superior no país se aproxima dos 30.000 repartidos entre instituições públicas e privadas.

Presentemente forma-se em menos tempos. Contra os anteriores cinco anos para a obtenção do grau de licenciatura, agora se situa nos quatro anos. A partir do próximo ano serão precisos apenas três anos.

Neste ritmo, muito em breve, crê-se que em um ano será possível haver o bacharelato, para em dois a licenciatura e finalmente em três o mestrado. Espera-se ainda que o doutoramento seja obtido facultativamente em quatro anos de ensino superior!

Dá a ideia de existência de uma educação desenquadrada da realidade. João Vaz, colunista do diário português Correio da Manhã, chama atenção relativamente ao “papel de dar diplomas” que é prosseguido pelas instituições de ensino desde o básico ao universitário. Entende que esta entrega não parece ter função mais profícua do que um reality show a fazer premiações.

A questão é avaliar se o importante é o diploma ou o saber. É que programas como o Fama Show, até são actualmente mais ambicionados porque proporcionam dinheiro imediato e fama egocêntrica. Enquanto que a educação é mais árdua e nem sempre garante de enriquecimento.
Hodiernamente, o desemprego e outros problemas da vida reflectem um desequilíbrio de formação. A diferença entre a vida real e o reality show é que na primeira o decisivo é o entendimento e no segundo só conta o prémio ou o diploma. A fama num concurso de TV leva a um mundo de ilusões. O conhecimento torna as pessoas independentes. Quem conhece a vida de um camponês ou de um pescador compreende porque é que não precisam de diploma. São auto-sustentáveis.
A eficácia da acção educativa não se deve medir pelo número de diplomas ou qualquer taxa de êxito. É uma questão política e exige outro entendimento. A tónica na qualidade de educação para alavancar a economia e todos sectores de actividade dela dependentes passa por uma melhor educação. Professores devem ser mais qualificados, mais bem pagos e o sistema obrigado a afastar rapidamente os docentes não capazes.
É perfeitamente compreensível a necessidade de se manter uma boa saúde financeira nas instituições de ensino, mormente nas privadas que, como quaisquer empresas privadas, visam o lucro. Mas a acumulação de capital gerada pela comercialização de serviços educacionais não deve ser o fim último.
O lucro de muitas destas instituições, alunos oriundos de um ensino médio com os seus problemas, corrupção acentuada, valores sociais em baixa, professores mal preparados e com baixos salários deixam transparecer uma realidade perigosa para o futuro da Nação e dos próprios universitários.
A figura de professor assistente ou monitor já perdeu interesse prático. Em boa verdade, a maior parte dos professores regentes contam com menos de dois anos pós formação. Casos há em que, nestas condições, os mesmos são coordenadores do curso na faculdade de interesse.

A docência, traduzida na leccionação de múltiplas cadeiras díspares, é uma de tantas actividades profissionais abraçadas pelo professor que na hora de elaboração do teste a preferência recai para escolha múltipla por ser fácil de corrigir e tomar menos tempo.

Não há perspectiva de investigação e publicação de obras científicas sobre as matérias por parte dos docentes. A tendência actual é de estes professores se verem pressionados a progredir na carreira através da obtenção dos títulos de Mestre e Doutor como se essas titulações tivessem o dom de melhorar a qualidade do ensino. O Doutorado e Mestrado só conseguem aumentar e aprofundar os conhecimentos e formar os pós graduados com as habilidades de pesquisa no interesse próprio.
A adopção em bloco de modelos de ensino estrangeiros sem uma avaliação anterior do seu impacto face a nossa realidade torna o sistema descaracterizado e pueril. Na realidade, como bem diz Mia Couto numa entrevista recente passada no Savana, os países do Terceiro Mundo em geral estão repetindo modelos de fora, e Moçambique não é excepção. O nosso país perdeu a capacidade de resistir a influências externas no sentido crítico de se avaliar em função dos seus próprios interesses. Não mais se questiona, não mais se interroga. E este cenário é mais grave quando as universidades, entanto que enformadoras de mentalidades, não tem uma definição de um sistema de ensino próprio que, alimentando-se, se necessário for, com o que de melhor tem para oferecer os sistemas estrangeiros, concatenando-os com elementos nacionais, limitam-se a um claro exercício de decalque dos externos, aplicando-os ipsis verbis.
Modelos assim não vingarão por falta de legitimidade local ao mesmo tempo que a sua manutenção se encontra condicionada às vicissitudes nos países de origem. Há quem defende este estado de coisas como consequência da globalização. Tal explicação não pode proceder, afinal a globalização vista idealmente é a interacção de todos os sujeitos no plano internacional influenciando-se nas trocas, dando cada um pouco de si e recebendo outro tanto.
O próprio estabelecimento como condição prévia para sua implantação ou expansão deverá ser objecto de censura por um conselho científico externo a avaliar o funcionamento concomitante de uma biblioteca ou laboratório condizente.
Uma alternativa essencial para ocorrer mudanças expressivas seria fortalecer a discussão da responsabilidade social das instituições de ensino. Esta, se correctamente aplicada, trará novos desafios não somente aos ambientes universitários predatórios e mercantilistas, mas a todos aqueles abertos às mudanças essenciais educacionais de extrema necessidade.
É curial que o sucesso dos formandos esteja atrelado ao carácter, criatividade, motivação e, principalmente, a persistência a serem encorajados. Essas características também criam a base para a formação de lideranças éticas e responsáveis que irão influenciar no desenvolvimento de uma sociedade mais humanizada e holística.
Neste quadro, haverá transmissão de valores essenciais para uma verdadeira aprendizagem com tónica na observação e experiência própria. Os formandos serão incitados a pensar por si mesmos, terão condições de fortalecer os seus ideais e descobrir a realidade do mundo onde se encontram inseridos, apresentando propostas concretas para fazer deste um melhor lugar.
Assim é que se chegará à produção e transmissão de saber responsáveis e à formação de profissionais cidadãos igualmente responsáveis que se habituarão a estudar sempre.

De contrário, as universidades continuarão a formar milhares de profissionais “despreparados” para ingressar no mercado das suas profissões correndo o risco de fazer colidir as suas naus com icebergs futuros. Não porque os não hão de ver. Simplesmente porque não os saberão identificar quando os virem…